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Álvaro Santi - Músico - Escritor - Porto Alegre/RS

Prosa

Poesia, Pintura, Música: um diálogo de vanguardas (ensaio, 1998)

Ãlvaro Santi

RESUMO: Tomando como referência o ensaio de João Cabral sobre a obra do pintor Joan Miró, procuramos traçar algumas analogias entre a poética do primeiro, a evolução da pintura do segundo, e as transformações sofridas pela música no século XX, em busca de alguns paradigmas comuns entre as diferentes artes Recorreremos também à poesia do autor para ilustrar as idéias por ele defendidas ou combatidas ao longo do ensaio.

“Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?”

Tomando como eixo o ensaio de João Cabral de Melo Neto sobre o pintor catalão Joan Miró (1893-1961), publicado em 1950 em Barcelona, procuramos as analogias possíveis entre o pensamento do autor, aplicado à evolução da pintura, e as transformações da música contemporânea. A música, e especialmente aquela produzida no século vinte, embora não seja aparentemente objeto de interesse do autor, insere-se aqui por apresentar em sua evolução evidentes referências às outras artes.
Recorreremos à poesia do autor para ilustrar as idéias por ele defendidas no texto, à procura de possíveis ressonâncias do desenvolvimento da arte musical contemporânea, no esforço de imaginar que espécie de música comporia João Cabral, se compositor fosse; ou que técnicas de composição musical (ou que compositores) se aproximam da sua escritura poética. É importante levar em conta, entretanto, que o pintor continuou produzindo durante mais de vinte anos após aquela data, e o poeta até hoje, podendo, no decorrer deste tempo ter havido mudanças substanciais em suas idéias ou técnicas.
Para Benedito Nunes,
“quase todas as tendências e peculiaridades da poesia de João Cabral... podem ser recapituladas através do ensaio que o poeta pernambucano dedicou à pintura de Joan Miró... Miró rompe com a profundidade da perspectiva, João Cabral com a poesia profunda...”
João Cabral sustenta a tese de que a pintura como a conhecemos, dentro da tradição inaugurada no Renascimento, paga um preço em troca da ilusão da terceira dimensão, obtida através da invenção da perspectiva:
“Por exigências da terceira dimensão se anulava na superfície a possibilidade de receber o tempo ou uma grafia qualquer que exigisse para sua contemplação um ato não estático do espectador. A terceira dimensão em pintura anula a existência do dinâmico (essa riqueza da antiga pintura decorativa) porque para ser percebida, em sua ilusão, exige a fixação do espectador num ponto ideal a partir do qual, e somente a partir do qual, essa ilusão é fornecida. Essa ilusão só pode ser apreendida enquanto conjunto... O enriquecimento trazido pela invenção dos meios de reproduzir a terceira dimensão priva o espectador de usar livremente de sua atenção.”
Importa notar estes pares de conceitos (que grifamos no texto acima): estático/dinâmico e conjunto/detalhe, aos quais virá em seguida juntar-se outro. “... ela [a terceira dimensão] significa o abandono do ritmo pelo equilíbrio” (grifo nosso). Podemos grosseiramente resumir as comparações que João Cabral faz entre a pintura de Miró e a pintura tradicional conforme a tabela seguinte:

pintura tradicional pintura de Miró
estático dinâmico
conjunto detalhe
massa / cor linha
profundidade superfície
equilíbrio ritmo

Note-se apenas, por enquanto, que “ritmo” é um termo propriamente musical na origem. Mais tarde voltaremos a ele.
Menos óbvia, mas de grande relevo, a primeira analogia em relação à história da música encontra-se no fato de a invenção da perspectiva ser contemporânea do estabelecimento da tonalidade, do sistema tonal, que consiste em referir-se a composição a uma nota central, em torno da qual gravitam todas as outras. As duas técnicas tornaram-se paradigmas, em suas respectivas artes, para o mundo ocidental, modelos que só começaram a se deteriorar no final do século passado. Porém na música o tonalismo é considerado dinâmico, em relação ao sistema modal (de origem grega e oriental, presente ainda na maior parte das culturas ditas primitivas), que trabalhava com escalas distintas — os modos, aos quais se atribuem distintos poderes de ação física e psicológica sobre o ouvinte, ou sobre a divindade — e totalmente independentes. No sistema tonal, somente dois modos passam a ser empregados, podendo ser transpostos para qualquer altura (tom). Diz-se que a música tonal progride quando passa de um tom para outro, isto é, movimenta-se. Porém o movimento é circular, já que retorna obrigatoriamente ao tom inicial.
“Equilíbrio significa estabilidade obtida por meio de uma correlativa distribuição de forças. Num tipo de arte que pede a fixação da atenção, é fácil de compreender como qualquer força excessivamente poderosa, por atraí-la, por impor-lhe mobilidade, seria fatal à ordem do conjunto.”
O conceito de equilíbrio faz parte igualmente da prática da música tonal, que avança por meio da oposição dissonância/consonância, ou seja, tensão/repouso. Toda dissonância pressupõe resolver-se em consonância, e sem dissonância não há movimento . Tal como o olhar que busca o ponto de fuga sobre o quadro, a música tonal tem uma direção na qual progride. As noções iluministas de progresso (da humanidade) e de centramento do mundo (no homem) encontram-se aí representadas.
A partir de 1924, ano do manifesto surrealista de Breton, Miró começa a abandonar a técnica tradicional:
“O abandono da terceira dimensão foi seguido do abandono, quase simultâneo, da exigência de centro do quadro... À idéia da subordinação de elementos a um ponto de interesse, ele substitui um tipo de composição em que todos os elementos merecem um igual destaque”.
Ora, não foi outra a idéia central do pensamento de Arnold Schoenberg (1875-1951), compositor alemão que alguns anos antes concebera um sistema musical onde todas as notas deveriam ter a mesma importância, batizando-o de dodecafonismo (referente aos doze sons da escala cromática ocidental). A invenção da música dodecafônica por Schoenberg foi uma tentativa de restabelecer uma espécie de equilíbrio perdido, visto que depois de Richard Wagner muitos compositores (inclusive o próprio Schoenberg) já experimentavam uma música desprovida simplesmente de tonalidade, ou atonal. A idéia do compositor era criar um sistema que viesse a substituir o anterior como prática comum, mas o tempo demonstrou que, embora muitos compositores o utilizem ainda hoje como uma opção a mais, já não há lugar no mundo das artes para este ou qualquer outro sistema que se proclame universalmente válido.
Voltando ao ensaio de João Cabral,...
“Isso não significa que Miró haja abandonado completamente, desde então, a preocupação de equilibrar... O que Miró obteve foi uma desintegração da unidade do quadro... Aliás, esse tipo de composição apenas superficialmente vai de encontro ao estatismo renascentista. Ele multiplica quadros dentro de um quadro e obriga o espectador a uma série de atos instantâneos, a uma contemplação descontínua”.
Também em música o equilíbrio é procurado no plano formal ou estrutural, segundo a concepção clássica de forma: “uma certa relação harmônica ou proporcional das partes com o todo e umas com as outras que pode ser analisada e finalmente reduzida a número” . Com a derrocada do sistema tonal, o problema do equilíbrio não desaparece, pelo contrário: torna-se mais complexo na música que já não dispõe da estrutura tonal. Quanto à unidade do quadro, embora seja talvez um exagero falar-se em desintegração, verdade é que já não tem tanta importância.
Referindo-se à evolução do trabalho do pintor durante sua estada em Mallorca, a partir de 1941, o próprio João Cabral encarrega-se de estabelecer a ligação com a música (grifos nossos): “Essa constante dinâmica se expressa por um crescente poder da linha e pelo desejo de obter, com sua linha, melodias absolutamente livres das limitadas melodias admitidas pela pintura fundada no Renascimento.”
A melodia, sucessão de sons — enquanto freqüência — dispostos no tempo, juntamente com o ritmo, sucessão de sons — enquanto duração — são os dois elementos fundamentais da música. Também o verso do poema é uma linha, contendo ritmo e melodia. A importância da linha na pintura, para o autor, é sua dimensão temporal, já que “... pertence à categoria do dinâmico e exige, para ser percorrida, um movimento do espectador”. No âmbito do poema, dificilmente podemos fugir do dinâmico: não há apreciação possível sem percorrer a linha do verso, exceção feita talvez à poesia concretista. Na música, a melodia, que com o advento do sistema tonal havia passado a subordinar-se à harmonia, dimensão vertical ou efeito dos sons ouvidos simultaneamente, também recuperou seu prestígio neste século.
Após apontar a subordinação da linha à massa e à superfície, na pintura tradicional, João Cabral conclui:
“Mais do que uma linha, isto é, em lugar daqueles organismos harmônicos e frios, sobre os quais nossa atenção deslizava meio indiferente, que nos agradavam precisamente pela indiferença com que podíamos executar nelas melodias conhecidas, o que nos parece assistir, diante de suas [de Miró] obras é ao próprio crescimento de um organismo... Através dessa luta entre vosso costume e sua surpresa essencial, de cada milímetro essas linhas se apoderam de vossa atenção. Elas sujeitam vossa atenção, acostumada a querer adivinhar as linhas, e a mantêm presa através de uma série ininterrupta de pequenas e mínimas surpresas. Aqui, vossa memória não ajuda vossa contemplação... Aqui, não podeis adivinhar, isto é: dispensar nada.”
Aqui há uma contradição que não esperamos resolver facilmente: o autor referia-se há pouco, à liberdade com que o espectador podia usar sua atenção numa obra não sujeita à perspectiva. Agora, fala em sujeição. Entretanto, no que se refere à posição do criador, Miró dá ênfase à liberdade, ao referir-se à sua obra (em 1974): “... esta simples linha me demonstra que conquistei a liberdade. Para mim, conquistar a liberdade significa conquistar a simplicidade.”
Esta idéia de atenção desempenha na época um papel relevante na poesia do autor, como aponta Benedito Nunes na “Psicologia da Composição”: “O que adquire relevo nessa análise crítica,... é o papel presentificante da atenção, que sobreleva ao evocativo da memória. O foco atencional, que dirige e centraliza o processo poético, retira da lembrança a remissão ao passado, para conservá-la apenas em seu valor de imagem.”
A palavra atenção “presentifica-se” duas vezes no poema abaixo:

PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO
I.
Saio de meu poema
como quem lava as mãos.

Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.

Talvez alguma concha
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;

talvez, como a camisa
vazia, que despi.

VI.
Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;

não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;

mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,

aranha; como o mais extremo
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes.

Mas o que sujeita a nossa atenção, no último trecho citado do ensaio, é algo muito mais importante: a previsibilidade, noção especialmente cara à música tonal, que desaparece completamente como característica não só da música, mas das artes deste século. Para o filósofo e músico Theodor Adorno, “na concepção que o público tem da música tradicional, permanece importante apenas o aspecto mais grosseiro, as idéias musicais fáceis de discernir, as passagens tragicamente belas, atmosferas e associações...” . Grande parte da aversão do público à música erudita do século vinte se deve à sua imprevisibilidade, causa de grande desconforto para o ouvinte. Para compreender esta música, aliás, a atenção auditiva do espectador, mesmo exigida ao máximo, ainda é insuficiente. A análise da música moderna, na maior parte dos casos, não pode prescindir em nível elementar do exame do texto escrito, da partitura, à qual o compositor ainda adiciona, quando acha conveniente, uma espécie de “bula”, um roteiro para sua interpretação.
A previsibilidade na literatura está retratada com ironia no poema seguinte:

PARÃFRASE DE REVERDY

O prosador tenta evitar
a quem o percorre esses trancos
da dicção da frase de pedras:
escreve-a em trilhos, alisando-a,

até o deslizante decassílabo
discursivo dos chãos de asfalto
que se viaja em quase-sono,
sem a lucidez dos sobressaltos.

A previsibilidade está sempre associada ao uso de fórmulas que, uma vez consagradas, tornam-se gastas com o uso até perderem o sentido. Para João Cabral, Miró trilha o caminho oposto:
“O pintor vai corroendo internamente seu vocabulário... até deixá-lo inteiramente vazio de qualquer valor semântico. Não sei se têm pensado nisso os que propõem para essa obra chaves de decifração...”
Esta afirmação encontra reforço em inúmeros poemas do autor, como o que segue, bastante conhecido:

ANTIODE

D.
Poesia, não será esse
o sentido em que
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo:

flor! Não uma
flor, nem aquela
flor-virtude — em
disfarçados urinóis).

Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.

Flor é o salto
da ave para o vôo;
o salto fora do sono
quando seu tecido

se rompe; é uma explosão
posta a funcionar,
como uma máquina,
uma jarra de flores.

Sigamos, entretanto, o ensaio de João Cabral:
“O trabalho criador do pintor catalão... traz consigo um problema especial. Sua consciência, seu rigor, não se apóia num elemento concreto: a lei, a norma exterior. Quando este elemento está presente, o trabalho da consciência se exerce no sentido, apenas, de uma fiscalização de resultados. Inegavelmente esse tipo de trabalho pode evitar o espontâneo e o não autêntico. Mas somente até um certo momento. Porque a verdade é que essas formas exteriores, intelectuais apenas enquanto se opõem a uma fácil manipulação, podem ser prontamente transformadas em hábito... É possível a uma pessoa acostumar-se a conversar em sonetos camonianos como foi possível ao olho ocidental acostumar-se com as sutis e complicadas proporções da pintura nascida com a exploração da terceira dimensão.”
É importante notar que estamos diante da primeira comparação feita pelo próprio poeta entre sua arte e a do pintor, e que se refere ao hábito. Se o caminho da lírica convencional convida o poeta a mergulhar na tradição até ser capaz de conversar “naturalmente” em sonetos camonianos, e uma vez que um soneto camoniano não é automaticamente bom por ser camoniano, outro caminho possível seria que cada poeta inventasse seu próprio soneto, sua própria tradição.
A propósito, num artigo sobre história da música, Mário de Andrade escrevia, em 1926 :
“A eterna luta da Arte não é propriamente contra a Teoria, porém, apesar da teoria. Os criadores geniais estabelecem um ou outro princípio teórico, mas esses princípios não têm para eles função básica de teoria. Exercem antes uma função normalizadora, estabilizadora de personalidade, ou de tendências mais ou menos coletivas. Isto quer dizer que para os artistas grandes, a teoria existe em função da Arte, e não tem nem cheiro leve de lei. É norma. Só nos períodos de estratificação duma modalidade artística, é que verdadeiramente a Teoria se organiza, tirando das criações do passado, regras que se fingem de leis. Mas então essas leis não servem mais geralmente, porque provindas duma arte caduca, arte que também não serve mais. Porque não representa mais a atualidade social duma civilização.”
Assim, não servem mais para a pintura a lei da perspectiva, para a música a tonalidade, e para João Cabral a lírica tradicional, que inclui certa “musicalidade”. Uma conseqüência dessa falta de parâmetros é apontada por Adorno, ao analisar o problema do juízo estético na música contemporânea:
“Desde o momento em que o processo de composição se mede unicamente segundo a conformação própria de cada obra e não mais segundo razões genéricas tacitamente aceitas, já não é possível ‘aprender’ a distinguir entre música boa ou música má. Quem quiser julgar deve considerar de frente os problemas e os antagonismos intransferíveis da criação individual, sobre a qual nada ensina a teoria musical geral ou a história da música.”
Em outro artigo, Mário de Andrade escreve que “a voz cantada quer a pureza e a imediata intensidade fisiológica do som musical. A voz falada quer a inteligibilidade e a imediata intensidade psicológica da palavra oral. Não haverá talvez conflito mais insolúvel.” Acontece que alguns compositores deste século renunciaram totalmente a essa “imediata intensidade fisiológica”, sendo por isto acusados de produzirem uma música “intelectual”, conforme observa Adorno:
“Entre as críticas... a mais difundida é a do intelectualismo: a nova música nasce do cérebro, não do coração ou do ouvido... Argumenta-se como se o idioma tonal dos últimos trezentos e cincoenta anos fosse ‘natureza’, e como se fosse ir contra a natureza superar o que está bloqueado pelo tempo, sendo que o próprio fato de tal bloqueio é testemunha precisamente de uma pressão social” .
De forma semelhante, o poeta João Cabral evita o “musical” em poesia, evita aquele plano fisiológico, “natural” de comunicação, que se lhe afigura perigoso, porque ambíguo, imprevisível, conforme se lê no poema abaixo:

FÃBULA DE ANFION

3. ANFION EM TEBAS
(...)
“Uma flauta: como
dominá-la, cavalo
solto, que é louco?

Como antecipar
a árvore de som
de tal semente?

daquele grão de vento
recebido no açude
a flauta cana ainda?

Uma flauta: como prever
suas modulações,
cavalo solto e louco?

Como traçar suas ondas
antecipadamente, como faz,
no tempo, o mar?

A flauta, eu a joguei
aos peixes surdo-
mudos do mar.”

A propósito, observa Antônio Houaiss que a poesia de João Cabral “... está no pólo oposto da poesia automática ou impulsiva, mas tampouco se inscreve na direção de certo neoparnasianismo vigente. A visão plástica é tão predominante... que acarreta o quase amortecimento do lado musical.” O “lado musical” a que se refere é naturalmente, a concepção de música tradicional, dentro da tradição lírica: fluente e agradável ao ouvido, que só nega a satisfação da expectativa do ouvinte para mais além satisfazê-la.
Sobre aquilo que habitualmente entende o senso comum por música, onde não se enquadram a maior parte das estéticas contemporâneas, o compositor Aaron Copland tece comentários bastante elucidativos:
“Poucos são os amantes da música que se dão conta de como estamos musicalmente dominados pela tradição romântica do século XIX. Considerável proporção da música ouvida hoje em dia foi criada naquele século, e sua maior parte provém de países de língua alemã. Nada de realmente novo foi possível em música até que se formasse uma reação contra essa tradição. Daí que a história da música moderna pode ser considerada como a história do gradativo afastamento da tradição musical germânica do século passado... Neste ponto, há de estabelecer uma diferença básica entre música romântica e música moderna. O romantismo alemão era altamente subjetivo e pessoal na expressão de suas emoções. O compositor do século XX busca um ideal mais universal, tendendo a ser mais objetivo e impessoal em sua música.”
Dentro deste espírito de objetividade, Copland encontra na música deste século uma maior afinidade com aquela anterior ao romantismo, constatando, malgrado seu, que “...todos nós tendemos a escutar a música do século XVIII com os ouvidos do século XIX”, e — concordando com Adorno — que “... as platéias inclinam-se a buscar um tipo idêntico de estímulo emocional nas obras de todos os compositores — românticos e pré-românticos por igual.” Isso não significa que a música do século XVIII, bem como a atual, esteja necessariamente desprovida de sentimento, mas “... tanto a qualidade da emoção como a forma expressiva que ela assume positivamente mudaram.”
Ao analisar a possível inserção do pintor em alguma “escola”, João Cabral lhe confere um lugar especial entre os surrealistas, na medida em que, ao contrário destes, o valor que encontra em seu trabalho não se submete à tese do “automatismo psíquico”, opondo-lhe “... o que havia em seu espírito de mínimo e minucioso, de artesanal.” Em se falando de surrealismo, é obrigatória uma referência direta à poesia de João Cabral, se recordarmos as influências presentes em seu primeiro livro “Pedra do Sono” (1942), ainda visíveis em “O Engenheiro” (1945). Mas não seria também “minucioso e artesanal” o caminho escolhido pelo poeta?
Para uma definição mais ou menos precisa do surrealismo, importante a esta altura, busquemos o socorro do crítico Herbert Read:
“A principal doutrina da escola [surrealista] é que existe um mundo mais real do que o mundo normal, e esse é o mundo da mente inconsciente... Sua meta é empregar quaisquer meios que lhe dêem acesso aos conteúdos reprimidos do inconsciente, e então misturar estes elementos livremente com as imagens mais conscientes e até com os elementos formais dos tipos normais de arte. O surrealismo acredita que existam mananciais ocultos no inconsciente, e que estes possam ser destampados se dermos rédeas à nossa imaginação — se permitirmos que o pensamento seja automático.”
O mesmo autor afirma que o surrealismo, já nessa época, “... inclui uma diversidade de estilos tão ampla que seria aconselhável dar ao termo a definição mais ampla possível. Por surrealismo poderíamos denotar todas as formas de arte que retenham motivos representativos, mas que os extraiam, não exclusivamente do nível do ego consciente, porém indiferentemente de qualquer nível da personalidade mental.”
Observa Benedito Nunes, ao deter-se no texto de João Cabral sobre Miró, que o pintor...
“... encaminha-se para uma arte da superfície, cujas leis negativas comportam o esvaziamento de toda uma estrutura visual persistente e a construção de formas, que se regem pela constância do dinamismo próprio da linha. Analogamente, afastando-se das profundezas da vida subjetiva, João Cabral encaminha-se para uma poesia da superfície, cuja intencionalidade, voltada na direção das coisas feitas de palavra, lhe permite compor ao decompor a experiência subjetiva como matéria de expressão lírica, fazendo da depuração e do esvaziamento as leis de sua poética negativa.”
Constatada esta tendência na evolução do trabalho do pintor e do poeta, já a partir de “O Engenheiro”, não se pode falar em profundidade, em mergulho no inconsciente, conforme a cartilha do surrealismo.
Seria interessante referirmos de passagem uma outra experiência estética contemporânea ao artigo de João Cabral, e que se relaciona intimamente ao assunto tratado aqui. Quem narra os episódios que deram origem à assim chamada música concreta é o historiador argentino Juan Carlos Paz:
“Seu inventor é, não um músico, pois este muito possivelmente teria seguido o caminho da evolução lógica de sua arte, além de todas as rotinas de seu ofício, e sim um engenheiro : Pierre Schaeffer. Iniciou este experimento de um modo tipicamente surrealista... O ponto de partida de sua descoberta é muito conhecido: provido de um gravador,... saiu um certo dia por ruas e caminhos, recolhendo todos os rumores, gritos, ruídos, assobios, miados, latidos, exclamações, zunidos de metais, silvos de locomotivas, cantos de pássaros, etc., que pode encontrar... Desse modo curioso e originalíssimo nasceu uma composição que, a julgar pelos elementos empregados para realizá-la, é inaudita, e que seu autor denominou ‘Suite pour 14 instruments’. A musique concrète havia nascido.”
No poema seguinte, encontramos uma defesa possível desta estética que procura ouvir “a voz das coisas”:

FALAR COM COISAS

As coisas, por detrás de nós,
exigem: falemos com elas,
mesmo quando nosso discurso
não consiga ser falar delas.
Dizem: falar sem coisas é
comprar o que seja sem moeda:
é sem fundos, falar com cheques,
em líquida, informe diarréia.

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor Wiesegrund. Filosofia da nova música. São Paulo, Perspectiva, 1974.
ANDRADE, Mário de. Música, doce música. São Paulo, Martins, 1963.
ANDRADE, Mário de. Aspectos da Música Brasileira. São Paulo, Martins, 1965.
COPLAND, Aaron. A nova música. Rio de Janeiro, Record, 1969.
FUNDACIÓ JOAN MIRÓ, prospecto da exposição Joan Miró 1893/1993, Barcelona, 1993.
HOUAISS, Antônio. Sobre João Cabral de Melo Neto. In Drummond mais seis poetas e um problema. Rio de Janeiro, Imago, 1976.
MELO NETO, João Cabral de. Museu de tudo e depois. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988.
— . Joan Miró. Rio de Janeiro, MEC, 1952.
— . Antologia Poética. 3ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1975.
NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. Petrópolis, Vozes, 1971.
PAZ, Juan Carlos. Introdução à música do nosso tempo. São Paulo, Duas Cidades, 1976.
READ, Herbert. A arte de agora agora. 2ª ed. São Paulo, Perspectiva, 1981.


00/00/1998

 

 


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